Artemísio, vulgo Miso, era morador da favela da Rocinha. Rapaz invocado, que brigava, fazia, acontecia, botava pra correr, matava a cobra e mostrava o pau, só para provar para quem quisesse ver e comprovar. Era moço de sangue quente, cabelo ruim e não usava pente. Não gostava de gente, não transava parente, aliás, nem sabia qual foi o ventre que o pariu. Quando estava de lua, se mandava para a rua, destrancando a porta do barraco com um pontapé. Se estava "p" da vida, tomava umas e outras para acabar de baratinar. Se chamavam a polícia, ele virava onça, queria até matar, a boca espumava de ódio, prometia retalhar com navalha.

 

Gostava de ouvir Bob Dylan, que ao se tornar cristão fez um disco de reggae, que Miso cantava do seu jeito. Dizia não ter religião, mas trazia fitinha do Senhor do Bonfim amarrada ao pulso e guia de candomblé no pescoço.

 

Certo dia, Miso conheceu uma gringa na praia, em São Conrado. A mulher, uma louraça, encheu-se de amores por aquele cara que a olhava tanto, (na verdade, namorando a sua bolsa). E Charlote, que conhecia um pouco de português, quis levar o negrinho para o primeiro mundo. Ele topou.

 

De orixás e pagodes já não queria ouvir falar. Passou a usar paletó, sapato de cromo alemão, queimou a teimosia, jogou fora seus tambores, esqueceu as feijoadas regadas à caipirinha na laje do Zé. Passou a ouvir sinfonias e em pouco tempo, falava fluentemente o francês.

 

Ao estudar a origem do nome do novo companheiro, a francesa descobriu que a palavra original é artemísia, planta muito difundida na medicina tradicional japonesa e chinesa. Também é chamada de flor-de-são-João. Depois disso, ela passou a chamá-lo de Flor. Ele gostava.

 

Certa tarde, ao descer do metrô, conversando ao celular, ouviu alguém lhe chamar pelo apelido. Voltou-se desconfiado. Quem diria! O bandido mais perigoso do morro fazendo turismo em Paris! Quase trabalhou para ele, mas um resquício de bom-senso lhe disse que era um caminho sem retorno.

 

Conversaram frivolidades. O bandido "mirava" Miso da cabeça aos pés. Logo foi perguntando: "roubô essa indumentária de bacana onde, meu?"

 

Foi difícil explicar que era o príncipe consorte de uma princesa Isabel, que lhe comprou a alforria. Hoje é empresário, o barraco verticalizou-se e suas escadas são computadorizadas.

 

O bandido insinuou-se para ser convidado para um jantar, mas Miso desconversou. Os compromissos são agendados e só teria vaga quando o sujeito já estivesse no Brasil. Despediram-se, por fim.

 

 Não foi bom aquele encontro. As origens, que já pareciam esquecidas, afloraram na mente. Ficou por longo tempo contemplando as águas do Sena. Arrependeu-se de contar sobre sua vida como se fosse um aproveitador. Afinal, aprendeu a amar aquela mulher que lhe ensinou a ser gente. Aprendeu com ela que o sentir não tem cor, que o ódio pode ser vermelho, mas a paz não é só branca. Ela pode ser negra também. Certas coisas, só os negros entendem. Integridade passou a ser tudo para aquele ser desprovido de valores. Mudou não só por fora... por dentro também.

 

Pensou nas crianças da favela. Queria abrir os braços protetores e envolvê-las. Algum, por sorte, pode ser jogador famoso de futebol, cantor de pagode, compositor de escola de samba, mas, a maioria mesmo, não teria bola, nem dentes, nem escola, nem palco. Quantos acabariam na vala com corpos perfurados de balas? Continuou a caminhada. Precisava esquecer nos braços da mulher amada. Chega de prender-se a um lugar, uma cidade, uma vida ruim que ficou no passado... chega de prender-se a si mesmo.

 

Mas, a dúvida  persiste: conseguirá desprender-se daquele passado que corre junto com o sangue de suas veias?

MIDI: VIAGEM

BADEM POWEL

 


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